30.12.17
Capítulo II - O ALFACINHA NO NORTE
simplesmente...
Decorara bem o percurso, mas enganara-se nas distâncias: chegou, já noite cerrada, de comboio, à estação de destino.
Ficou espantado por não ver vivalma.
Na estação deserta, palpitava apenas uma pequena lâmpada, tal-qual um solitário caga-lume num universo desolado.
Passou rapidamente por ele uma soturna espécie de sombra vivente, que, sem virar o rosto escondido na escuridão, abalou rapidamente não se sabia bem para onde.
Atravessou cautelosamente a linha de caminho-de-ferro, em direcção ao que lhe pareceu ser uma espécie de pequena pousada e tocou à campainha do portão de ferro da entrada.
– Quem é, que é que quer? – perguntou-lhe uma voz anónima, parecendo provir dos confins do mundo.
– Olhe, eu desci agora mesmo do comboio e vou para a cidade X, mas não vejo aqui nada – respondeu, esperançado e com o coração aos pulos.
– Você tem muito que andar! A cidade que você procura fica lá em cima, está a ver, aquelas luzes lá no alto! – retorquiu a voz anónima.
– Mas então onde é que está o táxi? – insistiu, renovando os últimos lampejos de esperança.
– A esta hora já não há táxi para ninguém. Olhe, vá andando! – concluiu, encerrando-se definitivamente no negrume da noite.
Pôs pés a caminho, subindo serenamente a estrada de paralelepípedos de granito, a mala de cabedal pesando-lhe num braço, pesando-lhe cada vez mais, mudando para o outro braço, parecendo-lhe pesar toneladas, pondo-a finalmente sobre a cabeça, como as varinas de Lisboa fazem com as canastras do peixe semi-vivo – ou semi-morto.
Estafado mas aliviado, entrou na bela cidade, que se estende, preguiçosa e calma, por ambas as bermas da estrada nacional que, do Porto, conduz os viajantes a Vila Real.
Um edifício de granito, relativamente recente e bem conservado, implantado na margem esquerda da estrada, em plena urbe, ostentava o inimitável logótipo da CGD – completara a longa viagem, já passava da meia-noite.
Ficou, especado e confuso, de pé, no meio daquela bizarra paisagem, portas fechadas, janelas com estores e batentes corridos, os poucos lampadários públicos desafiando corajosamente a escuridão ambiente.
– Que é que você está a fazer aqui? – Voz varonil e rude, surgida inesperadamente da obscuridade, assustou-o.
Virou as costas. Um indivíduo relativamente jovem, com a farda da Polícia de Segurança Pública, descontraído mas atento, esperava claramente uma resposta minimamente esclarecedora.
– Olhe, senhor guarda, acabei de chegar de Lisboa, venho trabalhar aqui para a CGD, preciso de um sítio para dormir algumas horas e… – retorquiu, dirigindo automaticamente o braço estendido, com o dedo em riste, para as portas da agência bancária.
– Ah! já percebi! Chegue aqui! – interrompeu, atravessando a rua e batendo com a biqueira da bota na envelhecida porta de madeira da pequena pensão, cujo reclame luminoso, de tão sumido, parecia alimentado por energia de outro mundo.
– Quem é, que é que se passa? Acordaram-me, carago! – Uma cara estremunhada, uns olhos remelosos espreitaram da pequena e carcomida janela da modesta trapeira de zinco.
– Está aqui este senhor que chegou agora de Lisboa; vem trabalhar aqui para a Caixa; o homem precisa de dormir; arranja-lhe aí um quarto!
- Tenho os quartos todos ocupados.
– Ao menos arranje-me uma cama, seja onde for. Preciso de dormir; amanhã de manhã entro ao serviço – atalhou o recém-chegado, num tom de voz em que se notava já alguns laivos de sentido desespero.
– Olhe, tenho ali uma cama debaixo de um vão de escada. Serve-lhe?
– Claro que serve.
– Vou descer e abrir-lhe a porta, espere aí um bocado.
Entrou, dormiu ali mesmo naquela noite; pela manhã, lavou-se, vestiu-se, tomou o pequeno almoço e, quando bateram as nove horas na torre da igreja matriz, atravessou a rua e, com a “guia de marcha” na mão, entrou no edifício da CGD e apresentou-se formalmente ao gerente local.
– Este alfacinha é que é fino! – diria, mais tarde, do interior da sua prática gaiola de vidro, rindo com prazer, o tesoureiro da agência. – Nós que somos de cá moramos todos fora daqui. E ele, que veio de Lisboa, é só atravessar a rua e já está cá dentro! É mesmo fino o rapaz! – concluía, no meio da risada geral.
Fora substituir um colega que estava de abalada para o Porto, alegadamente para continuar os seus estudos de Direito na Faculdade daquela cidade.
– Eh, pá!, eu moro numa vivenda a alguns quilómetros daqui; a casa é praticamente nova e a renda é baixa. Se te quiseres mudar para lá, vamos falar com o senhorio, que é o dono da drogaria que estás a ver daqui, ali ao lado da pensão onde estás alojado – sugeriu o generoso colega, cuja transferência já havia sido autorizada.
Algumas semanas mais tarde, deu voz de chamada à família e instalaram-se todos no primeiro andar da excelente moradia do droguista, sita no Campo do Ouro, freguesia de Santa Marta – localidade onde desabrochavam, em utilitárias fábricas familiares, não preciosas pepitas do raro metal, mas enxames de experientes “albardeiros”, alcunha esta que, sendo genericamente de todos os cidadãos locais, se aplicava também jocosamente e sem qualquer desprimor aos alfaiates locais.
A agência da CGD, apesar de ter muito trabalho – todo feito à mão, pois, naquela época quase medieval, nem se sonhava sequer com computadores ou coisa que minimamente com eles se parecesse –, dispunha de um quadro de pessoal reduzido: o gerente, o subgerente, o tesoureiro e três empregados de secretaria, os quais, sempre em perfeita e leal sintonia, se empenhavam por concluir a jornada diária até às dezoito horas, o que, aliás, raramente sucedia.
O fino e desenrascado alfacinha – jovem modesto, simples, sereno e sempre bem disposto – depressa caiu no goto de todos os cinco colegas, sobretudo a partir da altura em que todos observaram, com genuíno e fraternal espanto, que o experiente moço, sentado à máquina de escrever, dedilhava, com a maior tranquilidade e extrema desenvoltura, nada menos do que cem palavras por minuto – o que lhe advinha, não apenas do curso de dactilografia que completara dez anos antes, mas sobretudo da imensa prática adquirida na editora onde antes trabalhara e na qual passava dias e meses inteiros a dactilografar os textos manuscritos das obras a publicar.
Por isso, por sugestão expressa do gerente – pessoa amável, competente e, sobretudo, muito humana –, passou a exercer em plenitude todas as tarefas de secretariado, desde os “ofícios” os mais diversos ao preenchimento dos títulos de depósitos a prazo.
Porém, sempre que era necessário, sentava-se no tamborete de uma das duas “tumbas” – ora na destinada ao registo da “posição”, ora na afecta ao lançamento nos livros do “controle” – e, aí quase dependurado, caneta de tinta de permanente em riste, calculava manualmente os juros, lançava-os nas costas do documento, inscrevia o capital e os juros nas respectivas folhas de conta-corrente, os saldos também nas duas colunas a isso destinados, repetia a operação na caderneta de papel apresentada pelos clientes, transcrevia tudo para a folha do movimento diário e, se estivesse a trabalhar com os livros da “posição”, passava o expediente para o colega da tumba do “controle”, para que este voltasse a repetir todas as operações.
No final do dia, era tudo minuciosa e cuidadosamente conferido. Se alguma divergência, no capital ou nos juros diários – por pequeníssima que fosse – era detectada, teria de encontrar-se e corrigir-se o lapso, sem cuja adequada correcção não eram encerradas as contas daquele dia.
O generoso colega da Rua do Ouro não o enganara a respeito da actividade bancária nas agências da CGD abertas ao público, a qual era variada, poliforme, divertida até, não obstante ser obviamente de grande responsabilidade.
Às tantas entrava porta dentro, esbracejando alegremente como o Cristo do Corcovado, o extrovertido, enorme e sempre eufórico senhor Abade de uma paróquia próxima, por todos distribuindo gratuitamente a sua clerical e salvífica bênção e realizando, sem pressas, as operações bancárias que ali o tinham levado.
Mais ou menos uma vez por semana, curvada e andrajosa, com o odor característico de quem se banhava talvez uma vez por ano, comparecia a pedinte mor do concelho, a qual, mal entrava, logo despejava entre as mãos do desolado tesoureiro o produto semanal do seu peditório, representado em maltratadas e malcheirosas notas do banco de Portugal, as quais, uma vez recebidas e a contragosto contadas, iam aumentar o generoso saldo de depósitos a prazo daquela invulgar e típica mulher.
No verão, compareciam quase em massa os alegres emigrantes, muitos deles já bem travestidos de “franciús”, com a filharada atrás, um ou outro genro ou nora de nacionalidade estrangeira, todos conversando entre si, em voz bem alta, nos conhecidos arremedos das línguas estrangeiras, por forma tal que, quem observasse de fora, lhe pareceria que aquele pequeno átrio de agência bancária de província quase se transformara, bem de imediato, numa quase espécie de novo “champs-elysées”.
Por outro lado, vindos das terras de além-mar em África, no agradável gozo das suas merecidas “licenças graciosas”, surgiam os funcionários públicos recém-desembarcados das províncias ultramarinas, costas direitas, euforias várias nos gestos largos e nas falas abundantes, carteiras bem recheadas, ares de prosperidade pesporrente, mirando os pobres continentais quase como quem pela primeira vez contacta obedientes e submissos servos da gleba: “a África é aqui, não é lá!; os escravos são vocês, não somos nós!; aqui não se passa da cepa torta” e por aí fora. Por dever de ofício e porque as normas da normal cortesia isso impunham, os empregados da agência ouviam e calavam.
Num sábado de cada mês realizava-se a feira local, à qual acorriam os munícipes de todo o concelho; a agência enchia-se de aldeões endomingados, tagarelas e bem-humorados, que aproveitavam a ocasião ora para efectuar levantamentos em dinheiro, ora para, com a solenidade que é própria das ocasiões especiais, formalizar, com o pecúlio entretanto arduamente amealhado, mais um depósito a prazo.
Era o dia em que, de um lado e do outro do balcão de atendimento, a almofada da tinta preta destinada a colher as impressões digitais não tinha parança. Mesmo aqueles que sabiam desenhar o seu nome – “desculpe, hoje esqueci-me dos óculos…”, balbuciavam, para ingenuamente tentar ocultar o inesperado embaraço e a evidente iliteracia – eram convidados a apresentar os dedos de uma das mãos para a recolha da indispensável impressão digital.
Nesse dia não havia semana inglesa para ninguém: almoçava-se rapidamente e regressava-se ao serviço, para efectuar todos os registos impossíveis de fazer com tanta aglomeração de gente, pelo que, em regra, nestes sábados especiais, não se largava o trabalho quase nunca antes das seis ou sete horas da tarde.
Um belo dia, inesperadamente e pela primeira vez, chamaram-no ao telefone, para atender uma chamada proveniente de Viana. Era um vizinho da sua sogra, comunicando-lhe que estava a telefonar do hospital, onde a sua filha mais nova – então com pouco mais de um ano de idade – acabava de ser internada, por expressa recomendação do médico concelhio, que não lhe conseguiu fazer parar as súbitas convulsões de que a bebé fora acometida. Desatou a chorar, à vista de toda a gente.
– Que se passa, que se passa? – quiseram de imediato saber todos os colegas, também eles perturbados com a estranha explosão de choro.
Explicou, entre soluços, o que estava a suceder à sua pequena criança; que tinha de ir buscar a mulher a casa e partir imediatamente para o hospital.
– Eu levo-te lá no meu carro! – atalhou o gerente, prontamente. – Vamos já a tua casa buscar a tua mulher e seguimos viagem de imediato. Vou telefonar à minha a dizer-lhe que não espere hoje por mim para jantar, porque vou chegar tarde – continuou, enquanto vestia o casaco e punha o habitual chapéu de feltro, que, em toda a cidade, o caracterizava como genuíno homem daqueles sítios.
A criança fora, na realidade, acometida de perturbadoras convulsões, mas, depois de examinada e medicada por clínicos porventura mais experimentados e/ou com recurso a técnicas mais apropriadas, acalmara e, aquando da chegada dos pais ao hospital, já repousava, com evidente tranquilidade, no pequeno berço que lhe havia sido disponibilizado na enfermaria hospitalar.
– Quanto é que eu lhe devo? – perguntou no dia seguinte, mal reentrou na agência.
– Tu a mim não me deves nada – replicou o generoso gerente.
– Não, não, desculpe, assim não está certo! Eu quero pagar-lhe, nem que seja ao menos o preço da gasolina que gastou.
– Já te disse, não me deves nada, não tens de me pagar nada. Assunto encerrado, não se fala mais disse. Ainda bem que a tua filha recuperou! – concluiu, iniciando o atendimento de um cliente que, ao balcão, já o esperava.
Veio, no entretanto, o golpe dos capitães – logo transformado em revolução -, o reboliço geral, a euforia mal controlada e, com tudo isto, a abertura da Faculdade de Direito da Universidade Clássica de Lisboa aos alunos que a quisessem frequentar no horário pós-laboral.
– Olhem, vou pedir a transferência para Lisboa. Quero frequentar as aulas, porque, sem elas, muito dificilmente concluo o curso.
Meteu-se no comboio e veio à sede, autorizado pela gerência da agência:
– Senhor S…., como certamente ainda se lembra, estou a frequentar Direito na Clássica. Mas, se não acompanhar as aulas, não concluo as cadeiras do curso – disse.
– Queres regressar a Lisboa, não é? Deixa-me ver que vagas tenho aqui… Olha, há aqui uma vaga na agência Y. Interessa-te? – inquiriu o amável e sempre disponível empregado da secção de pessoal.
– Oh!, claro que me interessa! Foi aí que eu passei a maior parte do meu tempo; os meus pais ainda aí vivem – declarou, impressionado e quase emocionado.
– Está bem! Então vamos fazer assim: regressas ao norte, falas com o teu gerente e, se ele não levantar oposição, eu transfiro-te imediatamente para a agência que acabei de te indicar.
Regressou e falou com o gerente e com o subgerente.
– Como bem sabes, o trabalho aqui é muito e tu fazes cá falta Mas, se queres mesmo voltar para Lisboa, para nós está tudo bem. Mas é preciso que eles ponham aqui alguém para te substituir – advertiram, com a normal prudência e a habitual sageza.
Destarte, após pouco mais de dois anos de permanência na gentil e hospitaleira cidade nortenha – que nunca cessou de acarinhar aquele jovem e pequeno miúdo lisboeta, que, com a sua linda mulher e os três pequenos e aparentemente saudáveis filhos, sempre muito bem vestidos, fazia, sobretudo nas delicadas tardes de domingo, as delícias dos circunstantes –, após os referidos dois anos, dizia, o incansável bancário recebeu nova “guia de marcha” para se apresentar, no dia seguinte, pela manhã, na agência Y, em Lisboa.
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